O Brasil sempre foi pródigo no desenvolvimento e criação de novos veículos e de designers diferenciados e inovadores. Desde os anos de 1960 até o final dos anos de 1980 e começo de 1990, tivemos grandes e verdadeiros gênios, como Rino Malzone, Anísio Campos e muitos outros dos quais já comentei em outros episódios do podcast.
Mas, honestamente não sei o que motivou o quê. Se a abertura das importações representou um bloqueio para essa criatividade ou se a expressão da genialidade do designer brasileiro migrou para outros países e mercados, nas matrizes d principais montadoras mundiais.
Quando penso na efervescência e ebulição de novos projetos e ideias que aconteciam nos anos de 1970 a 1990, não sei se me sinto um privilegiado por ter assistido e participado ou se lamento essa época não existir mais na indústria automobilística nacional.
Será que a abertura das importações, ocorrida no início dos anos 90 freou ou dificultou a expressão dessa criatividade e a vinda de outras montadoras internacionais com seus projetos globais roubou a cena?
Já falei aqui de gênios ilustres como Tony Bianco, Anísio Campos e vários outros que alimentaram e deram vida e corpo a diferentes veículos e projetos esportivos, mas hoje vou comentar sobre a versatilidade e genialidade de outros personagens que construíram a imagem positiva da indústria automobilística brasileira no desenvolvimento de veículos comerciais especiais.
É uma pena que tenhamos perdido essa “veia” no decorrer dos últimos 20 anos, pois esses magos criadores apresentaram soluções genuinamente brasileiras para diferentes necessidades do nosso mercado.
Lembro de um episódio ocorrido no início da década de 1980, que espelha essa flexibilidade e versatilidade dos profissionais brasileiros. Naquela época, em razão da pouca variedade de modelos de produção em série existentes, a Danone, fabricante de produtos lácteos, precisava de um veículo com dimensões e capacidade de carga maiores do que uma Kombi e menores que um caminhão leve, como o Ford F-4000, como opção ideal para a distribuição de produtos ao comércio.
O veículo idealizado precisava unir das características de maior capacidade de carga e rapidez nos deslocamentos pela necessária preservação da qualidade dos alimentos.
Pela importância do programa pretendido e pela relação que mantinha com a antiga concessionária Ford, Sonnervig, um dos diretores da Danone agendou uma visita à revenda para obter as informações necessárias para desenvolvimento de um modelo que atendesse as necessidades da empresa, com o gerente de vendas, Enos Bortolai.
A inédita necessidade da Danone se transformou em um excitante desafio para o profissional de vendas e o gerente da Sonnervig decidiu apresentar a oportunidade ao diretor de vendas da Ford que agendou uma reunião com o departamento de engenharia para analisar a possibilidade ou conveniência de desenvolver um novo produto para o mercado.
Rapidamente, o diretor de engenharia da Ford e sua equipe aprovaram o desenvolvimento de um novo projeto que envolveu um detalhado estudo para atender o pedido da Danone.
A equipe da Ford desenvolveu um projeto de fornecimento de um chassi, que tinha como base uma pick-up F-100 com toda a sua parte mecânica e os componentes necessários para instalar os diferentes modelos de carrocerias especiais para cada aplicação. Como detalhe, esse veículo básico ganhou a identificação de pretinha por ser apenas um chassi com os componentes mecânicos necessários e sem a cabine e revestimentos. O apelido foi adotado em razão de o veículo ser parcialmente montado e ter o seu interior pintado na cor preta.
Como a Ford não poderia desenvolver internamente o novo produto e porque os materiais utilizados no desenvolvimento e produção da nova carroceria eram compostos plásticos, a empresa indicada pela Sonnervig para a produção dos veículos especiais para a Danone foi a Furglaine que, junto com a SR, da Souza Ramos, e a Companhia Santo Amaro de Veículos, por intermédio da Engerauto, pertencentes a revendedores Ford, transformaram a Ford na principal marca fabricante dessa categoria de veículos do continente sul-americano.
Com o trabalho estratégico de Enos Bortolai, a Furglaine iniciou atividades com a encomenda de 25 veículos com carroceria isotérmica, produzida em fibra de vidro e, com o gradativo aumento de pedidos, ampliou a linha de modelos, com um micro-ônibus, com acomodação para até 15 pessoas, nas versões Escolar, Ambulância e Trailer.
A Furglaine, assim como a Souza Ramos, a Engerauto e outros fabricantes que surgiram, criaram uma nova categoria de veículos para o mercado até que, em 1990, o presidente Fernando Collor de Mello considerou os carros brasileiros ultrapassados e liberou a importação de veículos, o que permitiu o ingresso no País de uma série de produtos entre os quais modelos comerciais para o transporte de pessoas e de cargas.
Ou seja, decretou o final de um segmento genuinamente nacional. Com a decisão do governo outras opções de veículos passaram a ser importadas com modelos variados, o que, beneficiados pelos preços inferiores, comprometeram a produção e venda de veículos nacionais com a oferta de modelos produzidos em países orientais e na Rússia, especialmente os chineses, sem o mesmo padrão de qualidade, durabilidade e garantia pós-vendas dos modelos nacionais. Essa estratégia pôs fim a um segmento criado no mercado brasileiro.
Enos Bortolai destacou-se como um vendedor diferente. Tratava os clientes com grande atenção e respeito e invariavelmente tinha a estratégia de sugerir produtos e oferecer facilidades de pagamento e de criar opções de pagamento. Ainda é um profissional versátil, estudioso e profundo conhecedor de leis do País. Sua mais recente e importante participação foi a colaboração prestada nos trabalhados de restauração do museu do Ipiranga, recentemente inaugurado e que se tornou grande atração e símbolo histórico para a cidade de São Paulo.
A Furglaine foi uma linha de utilitários produzida pela Carrocerias Furglass Indústria e Comércio Ltda., fábrica de furgões isotérmicos de Guarulhos (SP), nos anos de 1980, fundada cinco anos antes com participação da Família Massa, na época, principal acionista da Caio. Concebida com o apoio da Ford e da Sonnervig, concessionária paulistana da marca, o primeiro Furglaine foi um modelo furgão para 1.100 kg (ou 7,5 m³), lançado na II Brasil Transpo, em outubro daquele ano.
Construído sobre o chassi das picapes Ford F-100 e F-1000 (motor de quatro cilindros, a diesel, álcool ou gasolina), tinha carroceria monobloco com estrutura de aço revestida de plástico reforçado com fibra de vidro e apenas duas portas nas laterais, para motorista e ajudante; o acesso ao compartimento de carga se dava por uma porta de duas folhas na extremidade traseira. Três versões foram oferecidas: standard, isotérmica e frigorífica. Primeiro furgão integral idealizado e produzido no País, o Furglaine teve boa acolhida do mercado, para cuja demanda a capacidade de produção inicial de 30 unidades mensais foi insuficiente.
Em 1987, pouco mais de seis anos após o lançamento, 2.500 veículos já haviam sido vendidos; o ritmo de produção subiu para 40 unidades/mês.
Em maio de 1990, dois meses depois de decretado o Plano Collor, que imobilizou a economia do País, os negócios da Furglaine foram comprados por um empresário alagoano, dono de revendas Ford em Pernambuco e no Rio de Janeiro (menos de meio ano depois, adquiriu o controle de uma segunda transformadora, a SR).
A competição dos importados coreanos, que logo invadiriam o país, acabou por frustrar os planos da empresa d interrompeu a produção dos modelos Furglaine.
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Foto: Divulgação