Por Paulo Cardamone*
Diz a lenda que o poderoso dragão, com o compromisso de proteger seus tesouros, aterrorizou duas águias que dominavam o mundo, mas não a esperta raposa.
As águias, assustadas, reagiram ao ataque do dragão, mudando o rumo que seguiam, uma delas caracterizada pela capacidade de inovar em seus voos e a outra pela grande envergadura, orientação e poder sobre o ambiente. Diferentemente, a raposa reagiu de forma paciente e, com sabedoria, orientou seu caminho por meio de seus instintos naturais. Todos sobreviveram ao ataque do dragão, mas o futuro de cada um foi fortemente impactado por suas decisões.
Esta fábula explica os movimentos globais relacionados ao futuro da eletrificação dos sistemas de propulsão e dos veículos e comerciais leves no mundo.
Para ser proeminente no mercado automotivo, a China teve como única alternativa, migrar para sistemas elétricos de propulsão a bateria. Como este movimento não teve o objetivo exclusivo de preservação do planeta em relação a emissões de gases de efeito estufa, pois a solução não deveria ser única, os legisladores europeus se viram forçados a seguir caminho semelhante, legislando em favor de uma tecnologia específica, no caso, veículos elétricos puros a bateria (BEV), desincentivando de forma política os investimentos em motores a combustão interna.
Como primeiro movimento nesse sentido, em 2015, congressistas alemães iniciaram o movimento de legislar orientados politicamente para o caminho tecnológico dos BEV’s, que culminou com o plano de banimento dos motores a combustão interna (ICE) a partir de 2035.
Assustado com o desenrolar dos acontecimentos e com a crise global de semicondutores, Mr. Biden, tardiamente, decidiu seguir o mesmo caminho da Europa e passou os últimos dois anos desenvolvendo alternativas mirabolantes de benefícios para o desenvolvimento local não só de veículos como também de baterias e semicondutores, que poderiam ser foco de sanções da OMC por privilegiar conteúdo local.
A verdade é que a solução para o futuro da mobilidade sustentável e acessível não será única e exclusiva, pois as matrizes energéticas das diferentes regiões do mundo são completamente diferentes. Quando incluímos veículos pesados na equação, esta conclusão fica ainda mais clara.
Para o Brasil, por exemplo, que tem uma das matrizes mais limpas do mundo, existem alternativas mais baratas e mais fáceis de serem implementadas e não podemos nos assustar com a falácia de que estaremos, com isso, criando jabuticabas.
Precisamos mostrar e conscientizar os legisladores de que, no Brasil, um híbrido plug-in rodando com etanol no ciclo do poço à roda emite 23g CO2e, com uma bateria 1/3 menor que a de um veículo elétrico puro que emite 20g CO2e - sem a necessidade dos bilionários investimentos em infraestrutura.
Se tudo correr bem, na regulamentação do novo ciclo da fase 2 do programa Rota 2030, o Brasil será o primeiro país a adotar o novo ciclo do poço à roda no planeta. De novo, onde está a jabuticaba?
Enquanto os veículos BEV dependem exclusivamente do superávit da geração de energia elétrica de fontes limpas, globalmente ligadas a uma grande incerteza de viabilização nos curto e médio prazos, outras alternativas são atrativas e vantajosas em termos de investimento, inclusive e não somente para o Brasil como, aperfeiçoar os motores ICE para uso de combustíveis sintéticos, fomentar a maior utilização de biocombustíveis e investir na tecnologia das células de combustível a hidrogênio.
Especificamente quanto a tecnologias BEV, dependeremos por muito tempo de fontes externas para a produção de módulos de bateria, sempre com custos altos e que estariam fora do alcance dos veículos mais acessíveis que têm maior participação de mercado no país.
Para um país que não consegue regulamentar uma lei de 1997 para implementar a inspeção veicular, que resultaria na reciclagem de veículos de uma frota antiga e malcuidada, imagine falar nos investimentos necessários para a criação de uma rede de carregamento de alta potência quando há ao redor de 70 milhões de brasileiros que não dispõem sequer de infraestrutura de água potável e esgoto. Some-se a isso a necessidade de reciclagem das baterias e temos as condições para a tempestade perfeita.
Por isso, devemos, sim, criar nossas assim chamadas jabuticabas e minimizar obstáculos para o incentivo aos veículos híbridos puros e plug-in movidos a biocombustíveis como o mix limpo de nossa matriz energética, seja no abastecimento ou inclusive produção de veículos e componentes, inclusive as baterias.
Dessa forma, estaríamos seguindo o caminho natural para a evolução dos sistemas de propulsão desde o início do século XXI, ou seja, o de uma transição escalonada iniciando com os sistemas de hibridização leve e caminhando para os puramente elétricos que aqui continuarão a ser nicho e finalmente aos sistemas a hidrogênio.
Mostrar quanto do volume de mercado será inviabilizado se seguirmos a manada é responsabilidade a nós assignada e devemos evitar que esse dragão influencie e cutuque a onça com vara curta.
* Paulo Cardamone é CEO da Bright Consulting
Foto: Divulgação Bright Consulting/Reprodução