
Por Adalgisa Lopes*
Um milhão, cento e dezenove mil. Guarde este número. Ele representa o total de vidas que o trânsito rodoviário ceifa ao redor do mundo a cada ano, segundo a ONU. Frio, impessoal e tão vasto que mal conseguimos dimensionar, este número perdeu sua capacidade de nos chocar. Morrer no trânsito tornou-se banal, uma nota de rodapé nos noticiários, um risco calculado e aceito em nosso cotidiano.
Mas por que, então, insistimos em ter um Dia Mundial em Memória das Vítimas de Trânsito?
Insistimos porque é nosso dever lembrar que não estamos falando de estatística, mas de humanidade. Por trás de cada dígito, existe um rosto, uma história, uma cadeira que ficará para sempre vazia à mesa de jantar. Cada "unidade" dessa estatística era o amor da vida de alguém, o pai que ensinava a andar de bicicleta, a filha que sonhava em ser professora, o amigo cuja risada jamais será ouvida novamente.
Insistimos para expor a verdade inconveniente: o trânsito é um dos ambientes mais violentos que frequentamos. Ele mata mais que muitas guerras, mas não vemos seus responsáveis como criminosos. E quem são os algozes? Na maioria das vezes, somos nós. Eu, você. Pessoas comuns que, por um instante, julgam que uma olhada no celular, um quilômetro a mais no velocímetro ou aquela dose "inofensiva" de álcool não farão diferença. A diferença é a vida de alguém.
É preciso lembrar que essa violência não é democrática. Ela atinge com mais força os mais frágeis. Pedestres, ciclistas, motociclistas. Atinge os que não podem comprar um carro com seis airbags e freios de última geração. Atinge, de forma brutal, nossos jovens: a maioria esmagadora das vítimas são homens entre 18 e 27 anos, futuros interrompidos no auge de sua potência.
Quando um acidente acontece, a vida não segue em frente para todos. Para a família que fica, o tempo congela. Pais enterram filhos, vivenciando a dor mais antinatural que existe. Filhos crescem com um vazio no lugar de um abraço. A estrutura emocional e financeira de uma família inteira desmorona, e essa ferida, ao contrário do que se diz, nunca cicatriza por completo.
Por isso, este dia não é apenas sobre saudade. É sobre cobrança. É sobre a urgência de exigir políticas de segurança viária que protejam vidas, e não apenas facilitem o fluxo de veículos. É sobre a necessidade de plantar a semente da educação para o trânsito desde a mais tenra idade, para que a empatia ao volante seja um reflexo, não uma opção.
Acima de tudo, este dia existe para nos arrancar da letargia. Para que olhemos para o número "1,119 milhão" e, em vez de indiferença, sintamos indignação. Que esta data nos sirva não apenas para o luto, mas para a determinação e a fúria. A determinação que gera mudança. E a fúria que nos fará, finalmente, escolher a vida todos os dias.
*Adalgisa Lopes é psicóloga de Trânsito e presidente da Associação de Clínicas de Trânsito de Minas Gerais (ACTRANS-MG)