O Congresso Nacional derrubou, em sessão conjunta na semana passada (04/12), veto presidencial relacionado à Lei 15.153/2025. Originalmente, o Projeto de Lei introduzia no Código de Trânsito Brasileiro (CTB) apenas a possibilidade de recursos de multas serem destinados ao custeio da formação de condutores de baixa renda –a CNH Social. Mas, no processo legislativo, algumas emendas “jabuti” foram inseridas no texto, agravando a possibilidade de fraudes na transferência de veículos.
Um dos efeitos das emendas “jabuti” já havia sido sancionado e representou importante retrocesso para a defesa dos consumidores: a vistoria eletrônica, por meio 100% digital. Agora, com a derrubada do veto presidencial, o novo texto passa a admitir a possibilidade de que os departamentos estaduais de trânsito (Detrans) ofereçam a transferência de propriedade de veículos por meio de plataformas eletrônicas, com autenticação de documentos e assinaturas digitais validadas por empresas privadas.
A nova forma da lei desregula o processo a ponto de gerar um ambiente propício para diversos tipos de crimes, como estelionato, falsidade ideológica, transferências forçadas, clonagem e adulteração de veículos. Além disso, favorece a invasão de dispositivos, o acesso malicioso à conta gov.br e o vazamento de dados de proprietários e compradores.
“Justo quando o avanço da inteligência artificial atinge um limiar em que já não é possível distinguir o que é real do que é apenas uma simulação da realidade, é um risco desnecessário abolir a intermediação de um cartório, seja presencial ou digitalmente por meio do e-Notariado, e a vistoria presencial do veículo realizada por empresa credenciada”, alerta o Professor Marcelo Graglia, da PUC-SP, pós-doutorado em inteligência artificial e impactos sociais.
Ao justificar o veto, o governo federal alegou risco de fragmentação da infraestrutura de assinaturas eletrônicas entre estados, o que demonstra a preocupação com a compatibilidade dos sistemas dos órgãos de trânsito e, principalmente, com a manutenção de padrões nacionais mínimos de segurança.
A nova redação inserida pelo §4º do artigo 123 do CTB repassa a responsabilidade regulatória da transferência de veículos para a Secretaria Nacional de Trânsito (Senatran), o Conselho Nacional de Trânsito (Contran) e os Detrans. Cada órgão em sua jurisdição irá definir como se dará, de fato, o processo e o grau de digitalização de cada etapa.
O advogado Daniel Santos Garroux, presidente do Instituto Brasileiro de Direito Econômico e Políticas Sociais (IBDEPS), explica que o caminho ideal para proporcionar segurança ao processo de transferência e facilitar o combate às fraudes digitais seria uma regra mais restritiva. “Com a derrubada do veto, cada estado agirá de uma forma, o que expõe a população a graus distintos de risco e compromete a troca de informações em tempo real entre as entidades da federação, facilitando a prática de ilícitos”, afirma.
Simultaneamente, a necessidade de plataformas extremamente seguras gera pressão sobre as empresas estatais e privadas de tecnologia que integrarão o sistema de transferência de propriedade veicular. As informações relativas à assinatura digital, biometria, reconhecimento de imagem, fotos, vídeos, formulários online e plataformas de compartilhamento desses dados são elementos sensíveis para a segurança e a privacidade individual.
Garroux chama a atenção para o fato de que “quem utilizar as plataformas digitais privadas, muitas delas sediadas fora do país, não terá condições de responsabilizá-las pelas eventuais falhas na prestação do serviço”. Já os notários, donos dos cartórios de notas, são pessoalmente responsáveis pelos atos oficiais que praticam. “A responsabilidade constitucional do notário é uma garantia fundamental para os consumidores da qual o país está abrindo mão”, pondera o advogado.
Os crimes digitais e a revolução da IA
Dados do último relatório da Associação de Defesa de Dados Pessoais e do Consumidor (ADDP) apontam que o Brasil ocupa a segunda posição mundial em quantidade de ataques cibernéticos, com 700 milhões de tentativas por ano (1.379 por minuto). Só em 2025, foram registrados 28 milhões de golpes envolvendo Pix, além de milhões de fraudes em compras online e aplicativos de mensagens. “A capacidade de gerar, com o auxílio da IA, deepfakes cada vez mais elaboradas torna o cenário ainda mais preocupante”, observa Graglia.
Nas últimas semanas, as grandes empresas de tecnologia que disputam a vanguarda do mercado de agentes impulsionados por inteligência artificial lançaram atualizações de seus modelos, incluindo aqueles que geram imagens e vídeos. A qualidade dos novos produtos tem fomentado debate, burburinho e situações que deixam até mesmo os mais atentos na dúvida. Influenciadores da área de IA que conseguem operar com um conjunto de ferramentas para extrair o máximo delas têm aproveitado o limiar entre a realidade e a fantasia para criar engajamento e viralizar no Instagram.
“Em um mundo no qual o limiar entre o real e a manipulação fica cada vez menos perceptível, não é razoável que uma lei, em nome da praticidade, deixe tão frouxo o controle sobre a vontade real de transferência ou de venda de um veículo; a originalidade e autenticidade da documentação apresentada e do carro vistoriado poderão trazer muitas incertezas”, conclui Garroux.